segunda-feira, 26 de novembro de 2012

SECA



Reféns da seca


Sabiás são aves solitárias e por isso cantam bonito de fazer chorar. Mas como a Asa Branca, sumiram do Sertão, tangidas pela seca. A maior estiagem dos últimos 50 anos está sendo impiedosa até para os pássaros, que deixaram a caatinga silenciosa, sem o canto bonito dos sabiás, sem a serenata dos chofreus, sem a sonata dos azulões e dos galos de campina.

Sem água, não há vida. Nem para pássaros, nem para gente. A busca pelo líquido, esgotado em barragens que nunca secaram, barreiros, cacimbas e até em poços tem sido uma batalha inglória travada por homens, mulheres e crianças sem distinção de idade. É a face mais cruel da indústria da seca.

Para saciar a sede, todo esforço vale a pena e até velhinhos, que deveriam ser preservados pela crueldade e a humilhação do transporte da água, seja em lombo de jumento, carroça de boi ou até mesmo na cabeça, são vistos cruzando as terras esturricadas dos sertões pernambucanos.

Aos 78 anos, magro de assustar, mas com a cabeça no lugar, raciocínio rápido e boa memória, “seu” José Bastos Sobrinho não tem mais forças para serviço pesado. Seu galão com água é de latas de miniatura. Da sua casa, em Sertânia, até o chafariz público, ele ainda anda mais de 500 metros até alcançar o seu destino.

“Até há pouco tempo eu carregava a lata grande na cabeça, mas o tempo levou a minha força de gigante, pois meus braços mais pareciam os braços de Sansão, e não havia tempo ruim”, diz o velhinho, associando sua disposição ao personagem da mitologia grega. Em Sertânia, a água que abastece a cidade vem de uma adutora.

Que, aliás, não resolveu o drama da falta de água. Tanto que o açude da fazenda estadual do IPA, localizado a 6 km do centro, está com apenas 30% da sua capacidade de armazenamento, porque vem sendo utilizado para reforçar o sistema adutor.



Em Albuquerquené, distrito de Sertânia, onde boa parte da população vive de queimar lenha para o comércio do carvão, que em tempos passados já empregou muita gente, o agricultor Antônio Luis de Santana, 61 anos, passa praticamente o dia buscando água num poço. Ao seu dispor, uma carroça de burro.

Mas como criança faz também empreitada de gente grande, o camponês não dispensa a ajuda do filho José, o Zezinho, de apenas 9 anos, que enfrenta a mesma rotina do transporte de água, desta feita de carroça de ferro. Ele não é o Sansão sertaniense, mas pode carregar dois baldes plásticos de tamanho médio.

“A gente pega água ali num cacimbão, mas não é de boa qualidade não, tem muito sal. Mesmo assim, a gente usa para cozinhar, lavar prato e até beber”, diz Antônio, encontrado logo cedo, atravessando a BR que dá acesso a Sertânia.

“Já estamos acostumados a pegar sol brabo, mas como este nunca vimos igual. Por isso, a gente acorda cedo para garantir logo a água do dia sem sofrer tanto como sofremos aqui de 11 horas em diante”, disse.

O vai e vem de homens, mulheres e crianças pelas estradas sertanejas a procura da fonte mais próxima para saciar a sede da família e dos animais é algo que chama a atenção de quem cruza aquele pedaço de solo esturricado. Segundo levantamento oficial do Governo do Estado, a seca baniu mais de 80% das reservas hídricas do semiárido.

Para sorte de boa parte da população do Pajeú, a barragem de Rosário, em Iguaracy, a 349 km do Recife, é uma das raras exceções de resistência à inclemência da mais longa estiagem dos últimos 50 anos. Tem água suficiente para alimentar uma adutora que vai resolver o drama da falta de água em São José do Egito, com 58 km de tubos.



É do manancial do Rosário que Sebastião de Andrade Silva, 45 anos, retira água num chafariz público aberto pela Prefeitura Municipal. Com o auxilio de uma carroça puxada por um jumento e a companhia inseparável do cão vira-lata, ele enche, pacientemente, com balde, um tonel de mil litros.

“Ando 10 km até aqui. Esse chafariz tem sido a nossa salvação, pois não há água em lugar nenhum onde moro. Lá, a seca torrou um barreiro grande, uma pequena barragem e até as cacimbas”, disse Sebastião.

No Vale do Pajeú, região que mais sofre com a falta de água, não há situação mais dramática do que a da população de São José do Egito. Pela primeira vez em toda a sua história de resistência a longos períodos sem chover, as duas barragens que alimentam o sistema de fornecimento de água da Compesa secaram.



A tábua de salvação é disputar a tapa uma lata de água em cisternas de plásticos instaladas provisoriamente nos bairros e no centro da cidade. Na zona rural, as irmãs Maria e Francisca do Nascimento, do sítio Brejinho, enfrentam longas distâncias com uma lata de água na cabeça para não morrerem de sede.

Tudo porque até uma cisterna instalada na fazenda onde moram não tem mais um pingo. “Já viu cisterna vazia? Venha fotografar uma aqui”, convocou Maria, apontando para os fundos da sua casa de taipa, onde o Governo instalou a unidade dentro do programa “Água para todos”, que, ironicamente, não chegou a todos.

Mas, enquanto penam tanto na batalha diária pelo acesso à agua, há muitos vivendo do comércio do novo da água. A nova face da indústria da seca está estampada nas estradas, nas ruas, nos distritos e, principalmente, nos sítios. Existem duas frentes locando caminhões pipas: a do Exército e a do Estado.



José Wanderley, 53 anos, pertence ao verdadeiro exército do Ministério do Exército. Com um contrato mensal de R$ 4,9 mil em dia, a sua fonte é o rio São Francisco, em Santa Maria da Boa Vista. Ali, já existe uma central de abastecimento, alimentada por uma bomba, que funciona de cinco da matina até às 20 horas.

“Daqui saem mais de 100 pipas por dia”, revela. A água não é tratada pela Compesa, mas os pipeiros ganham pastilhas de cloro e são orientados a fazer o tratamento de forma improvisada. “Apenas uma pastilha dessas resolve a situação, deixando a água apropriada para o consumo humano”, garante.

Difícil, entretanto, é encontrar um caminhão pipa abastecendo o pobre e abandonado distrito de Montevidéu, pertencente ao município de Salgueiro, mas praticamente em território cearense, pois a divisa entre Pernambuco e Ceará é pontificada pela caixa de água da cearense Penaforte, que vez por outra leva água para Montevidéu.



Cansados de esperar pelos caminhões pipas, os agricultores Moacir de Souza e Antônio Jorge dos Santos puxam água de um lago fétido, com cheiro de pólvora, resultado da explosão de rochas para construção de um canal da Transposição, totalmente abandonado.

“A água não presta não, meu senhor. Tem gosto de pólvora. A gente retira de lá porque não há outro reservatório”, diz Moacir, acrescentando que o líquido não serve para o consumo humano. “A gente pega para lavar banheiro, fazer as necessidades de casa”, ressalta. Ali, o açude que abastecia a população, o chamado Açude do Oliveira, secou pela primeira vez, não pela intensidade da seca, que contribuiu, é verdade, mas, sobretudo, pelas obras da Transposição, que desviaram o seu leito e derrubaram o paredão, jogando por terra todas as suas reservas. 
Por Magno Martins. 

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