sexta-feira, 23 de novembro de 2012

SECA

Reféns da seca


Seca grande o povo sertanejo sente quando o chão racha de repente e não há como juntar os pedaços novamente. É também quando fica seco até um pedaço de chão que antes era um rio, um barreiro ou um açude e quando se olha até onde a vista alcança e o que se vê é o sol, fustigando feito lança.

É quando não tem sapo coaxando, quando os grilos não fazem serenata, quando as plantas não brotam, quando o agricultor deixa de acordar cedinho com a enxada nas costas. É quando mandacaru vira comida de gado, o milho e o feijão somem da mesa e o que resta apenas é um pedaço de rapadura para enganar a barriga.

“Não sei ler nem escrever, minha vida é lida na roça, meu lápis é uma enxada, desde novinho fui roceiro e cá estou sobrevivendo a mais uma tragédia”, diz, com jeito de poeta, o agricultor Damião Silva, 52 anos, caminhante do Sertão de vidas secas. Mas não um caminhante solitário.

No chão batido de Verdejante, município encravado entre Salgueiro, santuário das secas, e Serra Talhada, terra de Virgulino Ferreira, o Lampião, Damião, que se aposentou aos 40 anos por invalidez – perdeu uma das mãos num acidente com um facão – vai escapando da maior seca dos últimos 50 anos no Sertão porque é forte, como todo sertanejo.

Ontem, ao entardecer, ele foi encontrado levando toda a prole – a mulher e quatro filhos – numa carroça de burro com três cães vira-latas. “A seca queimou 10 hectares que plantei de milho e feijão, só me restou este burrinho e umas galinhas no quintal, mas a gente vai sair dessa porque Deus é grande e poderoso”, diz.



“No sertão, quem é rico ainda de jumento, quem é pobre anda a pé”, cantarolou Luiz Gonzaga, imortalizando a miséria de terras secas. Cem anos depois de Vidas Secas, onde brinquedo de gente pequena era osso de boi, Joyce, de nove anos, encontra no lixo tampinhas de garrafas de plástico e transforma em realidade o brinquedo que viu na loja, mas os pais não tiveram dinheiro para comprar.

Carinha de anjo, meiga e inteligente, Joyce mora num distrito de nome charmoso, de gente fidalga: Montevidéu, que não é a capital do Uruguai, mas uma pequena vila, de duas ruas, uma delas já quase no Ceará, porque se confunde com a cidade de Penaforte, pertencente ao Estado vizinho.

Seu lápis não é a enxada, como disse Damião de Verdejante. Encontrou o caminho das letras e do futuro numa escolinha ali bem perto, aonde vai a pé e faz planos para um futuro promissor, distante das plagas onde vive, onde a seca matou a esperança de toda a sua gente. “Gosto de estudar e sonho em ser gente na vida”, reage, mostrando firmeza e esperança.



Deixamos para trás a nova geração sertaneja simbolizada por Joyce e penetramos no mundo do passado, de gente que já viveu muito em terras euclidianas, que tem muitas estórias para contar, que nos tempos de hoje resta apenas o consolo de passar a experiência para os que estão despertando para a vida.

É o caso do quase centenário Raimundo Wenceslau da Silva, que chegou inteirão aos 95 anos na emblemática Conceição das Creoulas, metade quilombola, metade terra de índio atikum, em Salgueiro. Metade porque a comunidade é dividida entre negros e índios, que não se entendem, vivem em permanente conflito.

Conflitos que vão pela posse da terra até mesmo ao direito de receber uma cesta básica enviada por almas generosas para matar a fome de muita gente por lá. “Seu” Raimundo é índio atikum, trabalhou na roça a vida inteira, tem sete filhos e muita estória que não saem da sua memória ainda privilegiada.

“Já ouvi por ai gente dizendo que esta seca está sendo maior do que a de 1932, mas não pode ser comparada não, meu senhor. Vivi a de 32 e estou vivendo esta. A de 32, o povo morreu de verdade, de fome e abandono. Agora, não estou vendo o povo morrer. Tou vendo, sim, o gado não escapar, por falta de capim e água também”, desabafou.

“Seu” Raimundo também não tolera as provocações dos quilombolas que em Conceição das Creoulas ganharam o direito do acesso a terra. “Essas terras aqui foram habitadas desde a sua origem por nós, índios. Inventaram esse negócio de quilombola para tirar os nossos direitos e roubar as nossas terras”, diz.



Avanir Maria da Silva, índia atikum de Conceição das Creoulas, cansou de ser explorada pelos quilombolas em Conceição das Creoulas e deixou a roça para tentar a vida de manicure. E para isso está fazendo um curso na Associação dos Quilombolas. Lá, numa parceria com o Governo do Estado, a entidade oferece um curso por três meses.

“Vou tentar mudar de vida”, afirma, referindo-se à profissão de manicure. Nascida na aldeia Garrote, Avanir mora na cidade desde 1981, mas nunca se conformou com o tratamento dado pelo Governo aos índios, segundo ela bem diferente do que é dado aos quilombolas. “Nós, índios, sofremos uma tremenda discriminação. Aqui, só se olha para os negros”, observa.



O Governo que discrimina os índios em Conceição das Creoulas é o mesmo que levou o pecuarista Manoel Ferreira de Oliveira, aos 78 anos, a uma depressão que parece sem fim. Tudo porque as obras da Transposição passaram por cima da sua fazenda, destruíram o açude que abastecia a cidade e o seu rebanho, e o DNOCS não pagou a indenização.

Manoel, que viveu 75 anos na roça, tinha 50 cabeças de bovinos, cabras, ovelhas e cavalos de raça. Deitado numa rede, onde mata o tempo, vai fluindo a sua dor. “Tem hora que dá vontade de tocar fogo em tudo que restou, de tristeza, de desgosto e depois morrer”, revela.

Com os seis filhos, o velho pecuarista se transferiu da fazenda para uma casa em Penaforte, no Ceará, e da sua rede diz que agora só sai para a eternidade. “Não tenho mais força para viver, vou levar o resto da vida aqui nessa rede velha”, afirmou.



Bem distante de Montevidéu, a família do garoto Manoel Francisco Silva Neto, o “Netinho”, de sete anos, enfrenta as agruras da justiça todos os dias, porque ocupa uma área de invasão no projeto de irrigação Bebedouro, em Petrolina. O pai, a mãe e mais sete irmãos já chegaram na invasão Mundo Novo, como batizaram, expulsos de outra área ordenada pelo MST.

Netinho está fora da escola, não sabe ler, não tem brinquedos para se divertir com os irmãos. Seu único entretenimento nos últimos dias tem sido cuidar de um cabrito, seu xodó, a quem dá carinho e atenção durante todo o tempo que Deus dá. “Ele é meu companheiro, cuido como se fosse um irmão”, confessa.Como todo garoto pobre do Sertão, Netinho tem os pés no chão e vergonha de só comer feijão, quando tem. É riso tímido, porque fala errado, mas faz pirraça porque é um menino comol qualquer um da sua idade, que brota poesia cantada. Netinho é castigo no sertão, mas quem sabe um dia não será lição se escapar da morte severina. 
Por Magnno Martins.

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