domingo, 23 de julho de 2017

Taquaritinga do Norte - Pernambuco - Brasil:Melhor presunto do Brasil é tratado como família antes de virar comida


 POR ALEXANDRA FORBES
No agreste de Pernambuco, Tatiana Peebles cria suínos como animais de estimação e, na base da teimosia, inventou embutidos que hoje abastecem alguns dos principais restaurantes do país


Com carinho Tatiana e Eleonora, sua filha, tratam os porcos da fazenda como membros da família: os animais ouvem jazz para relaxar e atendem pelo nome (Foto: ANDRÉ KLOTZ)

"Silvio Berlusconi era tarado, mas era um tarado amoroso. Ele vinha se encostando, tinha um approach”, contou a fazendeira pernambucana Tatiana Peebles enquanto dirigia sua SUV branca serra acima. Caía a noite no sertão árido enquanto cruzávamos vilarejos mal-cuidados, com pressa de chegar à fazenda dela, a Yaguara, em Taquaritinga do Norte, cidade encravada em uma zona montanhosa e fértil a duas horas de Recife. “Ele comia todas que passavam pela frente”, disse. “Passei anos dando banho, comida e carinho, e foi assim até o fim. Depois que passaram a faca nele, fui me despedir, alisei a barriga dele e disse obrigada por tudo o que tinha feito por mim.”


Berlusconi, um cachaço de 400kg, pai de incontáveis ninhadas de porquinhos, foi sacrificado no fim de 2016, aos 5 anos, já pesado, cansado e sem dar conta de seu papel de macho reprodutor. Sua carne foi aproveitada da fuça ao rabo. Um tanto foi para a churrasqueira e outro tanto virou bacon e salame. Seus pernões traseiros, curados, estão maturando docemente em câmara fria e darão presuntos dos bons.
(Foto: ANDRÉ KLOTZ)

Tatiana, fazendeira que aparenta bem menos do que seus 50 anos, cresceu e estudou nos Estados Unidos. “Fui feita dentro de um Fusca, atrás da igreja Piedade, em Recife, mas nasci em Ohio.” Seu pai, o urbanista americano David Peebles, ainda jovem foi trabalhar em Recife. Apaixonou-se pela pernambucana Lúcia – e pela terra dela. Tiveram outra filha, Frances, escritora consagrada que se casou com americano e vive em Chicago. Seu bestseller The Seamstress, sobre duas irmãs e o cangaço, foi traduzido para dez línguas e virou filme que será lançado em breve. A Costureira e o Cangaceiro, produção conjunta entre a Globo Filmes e a Conspiração, é estrelado por Nanda Costa.

“Frances retrata Pernambuco lindamente quando escreve, mas é mais gringa que eu”, diz Tatiana. “Já eu, que nasci e morei metade da vida nos Estados Unidos, não tenho vontade de viver lá.” Depois de fazer faculdade no Colorado e morar em Nova York, foi para Miami, onde importava, torrava e revendia o café da fazenda de seus pais. A certa altura, 11 anos atrás, fartou-se. Largou tudo e mudou-se para a roça onde passava as férias na infância. “Sempre foi o sonho de meu pai transformar o sítio em negócio”, diz Tatiana. “Quando voltei de vez, ele me deu carta branca.”
(Foto: ANDRÉ KLOTZ)

Ela saiu comprando chácaras vizinhas e expandindo os cafezais. A pocilga, que sempre existira, abastecia os frequentes barbecues (churrascos à americana), costume do qual não abria mão o patriarca, nascido no Alabama e bom de grelha. Tatiana só fez aumentá-la. Com isso, além de suprir os jantares de família, poderia ter algum lucro. Cresceram também as produções de mel e cajá, novas fontes de receita. Essa parte do negócio ela delegou para poder dedicar-se à sua maior paixão: os porcos.

Como em Recife não pagam mais que R$ 4 pelo quilo de carne suína, Tatiana raciocinou: se espanhóis e italianos ganham fortunas com seus jamones e prosciutti, por que não replicar aquele modelo de negócio no agreste? Assim, em vez de vender carne de porco por mixaria, faria dela embutidos que valeriam 50 ou 60 vezes mais.
Pérolas dos porcos Os embutidos da Yaguara, tão elogiados quanto escassos, são vendidos apenas a (poucos) restaurantes. (Foto: ANDRÉ KLOTZ)

Foi lá por 2006 que ela fez seu primeiro presunto cru, depois de pesquisar técnicas em livros e na internet. Tratou o pernil com salmoura, pendurou-o e deixou curar um ano e meio. Bastou abri-lo e provar a primeira fatia – “Maravilhoso!” – para concluir que descobrira sua verdadeira vocação. Dali em diante, seria presunteira.

O resultado do primeiro teste foi incrível, mas vários outros deram errado. “Às vezes, o mofo entrava pelas veias sem que se notasse. Quando a gente abria, não dava pra comer”, diz. Ela levava os presuntos defeituosos até um terreno no alto da serra e os jogava de um penhasco. “Uma vez, tinha um sinhozinho lá embaixo com seu burrico. Ele se assustou quando viu chover presunto.”
(Foto: ANDRÉ KLOTZ)

Foram anos de testes até chegar à receita perfeita. Tatiana sela os pernis com uma mistura de banha clarificada e amolecida e grãos de pimenta-do-reino (um antibactericida natural). Essa pasta branca seca, endurece e forma uma capa protetora que impede que o presunto estrague. Depois de 18 meses na câmara fria, está pronto: úmido, amanteigado e muito gostoso.

Os chefs que compram o pouco presunto que a Yaguara produz dizem não haver nada igual no Brasil. “Se especialistas fizessem uma degustação às cegas com os melhores da Itália e da Espanha e o da Tatiana, lado a lado, tenho certeza de que se perderiam”, diz o chef André Mifano, do Lilu, um dos primeiros clientes e grande incentivador. Graças à iniciativa dele de convidá-la a subir ao seu lado no palco do fórum gastronômico da Semana Mesa SP em 2015 e apresentar seu trabalho, a Yaguara entrou no radar de chefs e jornalistas influentes.

Desde então, o presunto ganhou reputação e uma demanda maior do que ela consegue atender. Ainda assim, Tatiana está criando mais produtos para aproveitar outras partes do animal. Há lista de espera para comprar seu bacon, bem alto e carnudo, defumado com lenha de goiabeira e lambuzado com geleia de damasco. Ela também produz lardo – bloco alvo de gordura suína temperada e curada, iguaria muito apreciada na Itália.
O café, atividade original da fazenda (Foto: ANDRÉ KLOTZ)

“Aqui, ninguém conhecia. Nem de graça as pessoas queriam.” Os salames têm diferentes sabores: temperados com alho, laranja, coentro ou zimbro. A última? Ela fez ajustes em sua versão de sobrasada, linguiça com consistência de patê, curada e temperada com páprica picante, típica das Ilhas Baleares, na Espanha.

O café e o mel são vendidos para mercados (poucos), mas os embutidos, de tão escassos, só para restaurantes. Entre os principais clientes estão Tuju, Casa do Porco, Lilu e Cór Gastronomia, em São Paulo, Lasai e Olympe, no Rio, e os restaurantes dos chefs Onildo Rocha, Joca Pontes e Saburó, em Recife.

Mesmo que crie seus porcos para serem comidos, ela os trata como família. O sucessor de Berlusconi, Mario Batali, teve pífia performance cobrindo fêmeas. Ele acabou capado e substituído por um novo macho reinante, batizado de Musashi Super White Chocolate. Em confortáveis baias caiadas de branco, os porcos passam o dia repousando e ouvindo música. Uma das fêmeas chega a dar saltos quando toca Frank Sinatra. O repertório inclui jazz, música clássica e salsa. Banhos são dois por dia. Eles saem para passear soltos e seguem Tatiana e sua filha, Eleonora, de 7 anos, abanando os rabinhos. Ela os chama pelo nome e cuida com carinho de suas seis matrizes. O maior xodó era Dulcineia, recém-falecida. A ligação era tão forte entre as duas que nem se pensou em fazer de Dulcineia presunto e salame. Foi enterrada cerimoniosamente, a família às lágrimas.

Só dois porcos por mês vão para o abate porque Tatiana faz questão de destrinchar o animal, separando os cortes com que produzirá isso ou aquilo. Com ela trabalha Juscelino, sua “outra metade”. Forte, com alma pura de homem do campo, ele chegou à fazenda aos 5 anos, quando a mãe e o padrasto foram contratados. Nunca mais saiu. Quando Tatiana voltou de vez dos Estados Unidos, engataram um romance que já dura 10 anos e tiveram Eleonora.

A reputação da Yaguara só cresce, mas um negócio artesanal e de pouco volume dificilmente se paga – e Tatiana vai abrindo novas frentes. Está recuperando o cafezal de um sítio que ganhou há pouco de seu pai, ali perto. A propriedade tem um belo casarão histórico, onde Tatiana pretende receber chefs e turistas para fins de semana gastronômicos. E ela acaba de lançar, em parceria com a cervejaria recifense Ekäut, uma stout que leva seu café na fórmula.

“Ela é mãe, mulher, empreendedora, produtora... é tudo”, diz Juscelino. E ela é também cabeça-dura: planta em plena seca acreditando que Deus mandará chuva na hora certa, aposta em produtos que quase ninguém conhece no Brasil e reforma um velho casarão para receber visitantes que ela nem sabe se aparecerão. Loucura? Até agora, o que ela tem colhido são aplausos.

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